Por Bruno Oliveira Castro e Emília Vilela
É consabido que a Recuperação Judicial, introduzida pela Lei n. 11.101/2005[1], trata-se de um instrumento de segurança jurídica e econômica, na medida em que, para além de ser considerada como uma ferramenta processual e jurisdicional de superação da crise econômico-financeira da atividade empresarial sustentável, também se revela como instituto garantidor do direito ao desenvolvimento econômico, social, cultural, e, ambiental.
Tal concepção advém especialmente do fato de que as empresas, como uma atividade econômica sustentável, exercem um papel de cooperação com o Estado na promoção dos seus objetivos fundamentais, quais sejam da criação de empregos formais, diminuição das desigualdades sociais, desenvolvimento econômico, dentre outras, visto que podem praticar as melhores medidas estratégicas, ante a maior dinamicidade, razão pela qual, dentro de suas viabilidades, merecem ser preservadas à luz da Recuperação Judicial.
Nesse contexto, pois, a recuperação judicial busca viabilizar a superação de crise econômica do devedor empresário, permitindo a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo o estímulo à atividade econômica, nos moldes do artigo 47 da Lei n. 11.101/2005[2].
Isso tanto é verdade que, a Lei nº 11.101/2005, que regula a Recuperação Judicial, além de tratar da superação da crise econômico-financeira da atividade empresária viável economicamente, também trata da posição e interesse dos credores, promovendo, especialmente, a garantia de proteção ao crédito, ainda, privilegiando o relevante papel que as garantias pessoais e reais exercem na concessão de créditos pelas instituições, tudo isso, pois, que é a alma do mundo empresarial para alavancar e viabilizar os processos de produção e circulação de mercadorias.
Outrossim, não se pode descurar do importante papel que a recuperação judicial exerce para a segurança jurídica e econômica, com a preservação dos empregos e do exercício da função social da empresa, superando-se, neste ponto, inclusive, o dualismo de interesses de credores e do empresário ou sociedade empresária em recuperação judicial, com o que o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.532.943/MT, andou profundamente distante, ao chancelar a indistinta supressão das garantias de todos os credores por mera aprovação da maioria em Assembleia de Credores.
Isso quer dizer que, esquecendo-se dos princípios básicos contratuais e legais, o Superior Tribunal de Justiça permitiu que todos os credores ficassem submetidos quanto à previsão de liberação de garantias previstas no plano de recuperação judicial aprovado, impedindo, por conseguinte, a execução das dívidas dos terceiros garantidores, o que contraria o artigo 49, §1º, da Lei nº 11.101/2005[3], bem como o artigo 50, §1º, da mesma lei[4].
Veja-se, a Lei de Falências e Recuperação de Empresas (Lei 11.101/05) expressamente prevê, no art. 50, §1º, que a supressão só será admitida diante da aprovação expressa do credor titular da garantia real. A seu turno, o art. 49, §1º, da mesma lei dispõe que os credores conservam seus direitos e privilégios contra coobrigados, fiadores e obrigados de regresso. Na mesma linha, a Súmula n.º 581/STJ[5] esclarece que a recuperação judicial não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia real ou fidejussória.
Diante desse contexto, evidentemente, tem-se que o entendimento do Superior Tribunal de Justiça acima esposado representa um acinte à segurança jurídica, em potencial prejuízo a todos os envolvidos em recuperações judiciais, na medida em que a incerteza instaurada repercute no encarecimento e retração da concessão de crédito e, consequentemente na redução da circulação de riqueza, atravancando o crescimento e desenvolvimento econômico como um todo.
Sem olvidar que, as disposições de um plano, ainda que aprovadas majoritariamente, não podem conflitar frontalmente com o texto legal, nem mesmo à luz do princípio da preservação da empresa, sob pena de se endossar a possibilidade de se superar quaisquer direitos dos credores, inclusive aqueles protegidos na própria legislação, em prol do salvamento da empresa em crise econômico-financeira.
Por fim, não subsiste o posicionamento externado pelo STJ, na medida em que o princípio majoritário não resiste a uma análise superficial da situação. No caso de garantias fidejussórias, invariavelmente, nem todos os credores terão negociado essas garantias, de modo que é incoerente admitir que eles possam votar para suprimir garantias licitamente negociadas por outros credores, beneficiando um terceiro, que sequer é parte da recuperação judicial. No caso das garantias reais, somente aquele que tem o direito real sobre o ativo específico deve ter o direito de liberá-lo, descabendo submeter essa decisão a quaisquer outros credores.
Pois bem. Tanto é crível que o julgamento do Recurso Especial nº 1.532.943/MT é frágil e instaura uma verdadeira insegurança jurídica, ao permitir a supressão de garantias de forma compulsória a todos os credores, que o Superior Tribunal de Justiça, enfrentando novamente a temática, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.794.209, em 12 de maio de 2021, firmou o posicionamento de que não é possível suprimir garantias reais e fidejussórias sem a anuência do credor.
Veja-se que o relator do Recurso Especial nº 1.794.209, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, considerou, com muita sabedoria, os quesitos acima explicitados, notadamente quanto ao reflexo no setor econômico do país que, diante do cenário de incerteza quanto ao recebimento do crédito em decorrência do enfraquecimento das garantias, acaba por promover a retração da concessão de crédito. Sem olvidar o fato de que, a fiança, o aval e o direito de regresso, constituem-se em direitos disponíveis e, como tal, revela-se eficaz o ato do credor que vota favoravelmente ao Plano de Recuperação Judicial com a cláusula extensiva da novação aos coobrigados, renunciando-se, pois, a garantia estipulada em seu favor, o que, por sua vez, não se pode presumir (artigo 361 do Código Civil[6]) em detrimento dos credores ausentes e dissidentes do ato assemblear (Assembleia Geral de Credores) que deliberou pela aprovação do plano recuperacional, na medida em que, por expressa vedação legal (artigo 49, § 1º e artigo 50, § 1º, da Lei nº 11.101/2005), não se pode suprimir garantias sem autorização do titular.
Salienta-se que os ministros Raul Araújo, Nancy Andrighi, Antonio Carlos Ferreira, Marco Aurélio Buzzi seguiram o entendimento do relator, formando a maioria da seção.
Portanto, o posicionamento do STJ com o julgamento do Recurso Especial nº 1.532.943/MT, indubitavelmente, causa graves consequências ao custo do crédito, ao empreendedorismo e a segurança jurídica, institutos esses, pois, que a lei recuperacional alberga expressamente, sobre os quais as interpretações restaram dissipadas com a alteração da Lei n. 11.101/2005, com as disposições da Lei n. 14.112/2020[7], que, por sua vez, manteve as cláusulas prevendo que a supressão de garantias dependem da anuência específica dos detentores dessas garantias, bem como diante do novo entendimento apresentado por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.794.209, no dia 12 de maio de 2021.
[1] _______. Lei n. 11.101/2005, de 09 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária.. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm> Acesso em: 03 de agosto de 2021.
[2] Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
[3] Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
1º Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso.
[4] Art. 50. Constituem meios de recuperação judicial, observada a legislação pertinente a cada caso, dentre outros:
1º Na alienação de bem objeto de garantia real, a supressão da garantia ou sua substituição somente serão admitidas mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia.
[5] A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória.
[6] Art. 361. Não havendo ânimo de novar, expresso ou tácito mas inequívoco, a segunda obrigação confirma simplesmente a primeira.
[7] _______. Lei n. 11.101/2005, de 09 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária.. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm> Acesso em: 03 de agosto de 2021.
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